Contos

O rapaz de óculos
I Ato: A menina, a casa:
             Ela era uma menina estranha. Era o que todos diziam. No mínimo poderia ser diferente dos outros da sua idade, como ponderava cuidadosamente a mãe, quando ouvia isso dos parentes. Existem certas pessoas que em seu jeito calado e noturno de ser, escondem muitos segredos, apenas porque sabem ver o silêncio do mundo, e assim se tornam perigosas, essas pessoas reservam segredos que podem ser mortais. E é por isso que neste breve relato eu não revelarei o seu nome. Diziam os antigos egípcios que o nome guarda o poder de uma criatura.
          Era parte de uma família bastante comum, suburbana. Éramos amigos desde muito pequenos devido ao fato de sermos vizinhos, e é por isso que posso falar dela apropriando-me do que ela era e de como pensava. Eu simplesmente sabia. Eu a admirava, ou o que para um menino de 9 anos e o mesmo que amor.
Sua casa parecia apagada entre as casas da rua. Por fora era uma coleção de muitas superfícies brancas. Seus irmãos nunca brincavam na rua, pareciam se divertir muito dentro da casa. Talvez houvesse mesmo ali como eu imaginava, passagens secretas.
        A mãe da menina decorava a casa com toda a sorte de objetos pequenos e muito floridos e estava sempre sorrindo gratuitamente. Aos finais de semana, a casa recebia os familiares e ouviam-se muitos risos e o bater de louças e talheres. Nessas ocasiões as crianças eram ignoradas, e medida que estivessem bem alimentadas, podiam brincar. Ela nunca se juntava aos outros.
       A menina andava diferente, mas era sempre calada, só eu sabia o que ela pensava, pois aprendi a observar. Gostava colecionar flores que achava no caminho de volta da escola, não pela beleza imediata delas, mas para ver como elas iam perdendo a cor quando iam envelhecendo. Ela dizia como quem pede socorro: “Olhe, o tempo leva embora tudo”. Eu sabia o que ela queria dizer, mas isso nunca me seria permitido compreender, então eu me calava, como faço agora. Só posso revelar que ela gostava do tempo passando.
      Ela tinha então 14 anos, e isso a faria estar muito perto do mundo dos adultos, onde, ao contrário do mundo em que eu ainda vivia, tudo era definitivo. E Justamente por ela escolher sempre os caminhos mais solitários é que agora tinha que se virar do avesso para estar fora, viver no mundo do lado de fora é perigoso.
       Suas horas, quando acordada eram de espera, e quando fechava os olhos o mundo fazia silêncio. Pelo que esperava? Todos esperam por alguma coisa, mas nem sempre se sabe pelo que se espera. Ela esperava por saber de si. Algumas pessoas tem a coragem de esperar para sempre, ou seja, nunca esperar.
        Sua infância fora vivida sabiamente, e as lembranças dessa época seriam para sempre guardadas como relíquias sem materialidade: a terra, os aromas que lembravam cada época, as invenções do mundo. Toda a criança é um Deus que cria um mundo inteiro. Tivemos uma infância antiga.
Às vezes a incomodava ter que parecer adulta, embora já fosse triste o bastante para isso. Lembrava-se que em outros tempos havia sido mais forte, era capaz de conhecer profundamente a alma de todos a seu redor e por isso nunca se surpreendia, ela sempre sabia. Conhecia o mundo de coração limpo.
         Quando cresceu começou a notar que as peças com que havia construído o seu mundo eram contraditórias. Agora se via numa realidade onde não sabia o que existia e o que havia sido por ela imaginado. Porém, tudo não precisaria ter sido um dia imaginado para existir? Eu não conseguia ver qual era então o problema. Mas ela cada vez estava mais distante.
          Às vezes ela dizia que queria o mundo em silêncio, então ia até o apartamento de sua Tia Ana, numa cidade maior, mas próxima da nossa, onde ficava por horas em seu lugar preferido: a sacada. De lá ela via o movimento caótico da cidade. Ela gostava da palavra caos, pois achava que a idéia de caos a ajudava a compreender a si mesma. Mas de vez em quando sentia falta da linearidade e da calma que a fizeram nascer. Queria uma linha reta para as coisas.
          Quando via alguma pergunta que não sabia responder, ou qualquer situação em que qualquer pessoa simplesmente fugiria, ela simplesmente repetia para si a mesma frase: “Não me são cedidas indulgencias, nascer foi a minha ultima chance”. Ela era a serpente que morde a própria cauda.
          Sua coragem era como a dos antigos guerreiros, mas ela sabia guardá-la só para si, por isso sempre se escondia, mesmo quando estava diante das pessoas. Ela sabia que se mostrasse sua coragem, logo ela seria roubada, pois a coragem de uma pessoa é algo muito valioso. Acostumou-se portanto a fingir fragilidade até que acabou se transformando em uma flor esquecida por longo tempo dentro de um livro.
II Ato: O homem, a rua.
       A Rua Santa Helena era como eram naquela época todas as ruas de subúrbio: Bastante tranqüila e todos se conheciam. Era costume que todos fossem cumprimentar novos vizinhos e por causa dos novos moradores da rua, que eu pude ver como ela era agora frágil.
      A casa da nova família, fazia muitos anos que estava desocupada. A família Clemente, vindo de outra cidade comprou do antigo dono. João Clemente e a mulher tinham um único filho, Arthur. Um pianista aprendiz.
       Arthur Clemente era delicado como as flores que ela guardava para morrerem em seus livros, e eu deveria ter sabido que era por isso que ela o quis. Eu poderia chamá-lo de Homem-flor: ele era como ela, sabia ver o que estava no fundo das coisas, e sem julgamento, e sabia sorrir e continuar deixando que elas existissem apenas como eram.
       Sim, ele podia sorrir, e isso a deixava intrigada. Logo ela que sempre fora uma menina triste e que não entendia o porquê das longas tardes de gargalhadas nos fins de semana em sua casa pintada de branco.
          O fato é que ele possuía algo que ela desejava. Ela queria se apropriar do que ele era, como que para possuir os poderes que ele possuía sobre o mundo. Todas as tardes em sua casa, ele tocava piano. E como sua casa fosse à frente da casa da família Clemente ela ouvia. Desde então, ele tocava para ela, mesmo que não soubesse disso. Nem ela sabia.
           Tinha uma aparência tranqüila, como a de alguém que se conhecesse muito tempo antes e a quem se pudesse sempre contar um segredo. Ele era confiável e se conduzia com os movimentos nobres e dignos de um cavalo. Mesmo sendo alguém que podia compreender que podem ser pensadas muitas coisas que não são ditas, ele estava sempre desprotegido, e isso a desafiava. Vestia-se sempre como um dia de chuva: cinza. Usava óculos pesados como que para parecer que tivesse mais idade que os seus dezoito anos. Para ela os óculos eram como um sinal. Ela o reconheceu.
III ato: Amor
          Ela passou a enfeitar-se, e agora deixava as flores pelo caminho, vivas. Passou a querer as borboletas, mas nunca as tocava, ela as queria como eram: livres, efêmeras e inalcançáveis. Usava em seus cabelos uma presilha com formato de borboleta, como se fosse o signo de sua nova existência, ou como se ela mesma tivesse acabado de sair de um casulo.
          Às vezes ela se esforçava para sorrir, e de alguma forma ser como ele_ para atraí-lo. Mas era de sua natureza saber a crueldade do mundo, então logo voltava a si. Ela procurava em si mesma a coragem que tinha escondido dos outros, pois agora, transformada, precisaria dela para ser como eles. E viver do lado de fora.
           Eu a via cada vez mais noturna. Um dia ela teria que assumir que havia matado a sua coragem exatamente no dia em que decidiu que nunca mais guardaria flores mortas entre as páginas de seus livros. É preciso ter muita coragem para matar uma flor.
            Certa vez ela me disse que o que fazia com que as borboletas imitassem o colorido das flores era algo que poderia ser chamado de “amor”, intrigado, eu perguntei se “amor” era como ser um espelho, só que ao contrário. Ela se calou. Eu já sabia que se ela respondesse a pergunta, teria que admitir que espelhos se quebram, e ela não queria fazer isso, então fingiu não saber a resposta. Continuamos em silêncio, entendendo perfeitamente que não deveríamos falar.
              Muito depois desta conversa, ela viria até mim, como que para anunciar um recado de outra pessoa, retiraria do bolso do paletó de lã um pequeno papel dobrado com algumas palavras escritas com sua própria letra, trêmula como quem repentinamente tivesse permissão para descobrir qualquer segredo sobre si mesma: “Amor é isso... e sim, é um espelho quebrado também” admitiu baixando os olhos, vencida.
            Tendo dito isto ela começou a recitar um texto de um antigo ritual egípcio que acabara de encontrar por acaso em um livro empoeirado na biblioteca da escola: “Cresci em suas pernas, vim à existência em seus braços, criei o espaço em seu corpo... não fui feito em um corpo, nem amalgamado em um ovo, nem concebido em um ventre... todo corpo e toda boca de todos os deuses, todos os homens, todos os animais e todo o ser vivo que rasteja, pensando e proferindo tudo o que desejam... que meu nome saia do meu corpo para instalar-se em seu corpo”
             Desde esse dia ela passou a esconder-se mais, julgou que todos soubessem o que até então era o seu segredo: a imagem do homem-flor a transformara em uma nova forma de vida, que era muito delicada como algo que se têm cuidados, e que tenha medo de estar diante de espelhos. Borboletas são frágeis e espelhos viram areia brilhante, e um dia se dirá que nada existiu.
IV ato: O jantar
            Certo dia ela se despediu mais cedo, foi para casa enquanto ainda era dia. O sol da tarde batia nas paredes brancas da casa formando diversas angulações, cinza e amarelo claro. Depois de colorir-se discretamente com um vestido que fingia ser novo, foi até o portão, como se ela o esperasse. Era o horário que o rapaz terminava a sua aula de música.
           Quando viu o professor se despedir apontando na porta da sala da casa a frente da sua, foi tomada de um sobressalto: Ele viria até o portão para acompanhá-lo. Sentiu-se nauseada de medo. Com o coração batendo forte, como se para imitar o vento forte nas folhas das arvores. O rosto ficou quente a ponto de sentir-se ridícula. Não pode mais suportar-se naquele estado, teve que se esconder antes que fosse vista.
           Muitos anos depois, ela riria de si mesma neste episódio, ao ler anotado em um papel escondido dentro de um de seus livros antigos a única coisa que pode dizer a si mesma sobre esse episódio na ocasião: “Mentira, só não sei como ser transparente entende? É só isso, é só medo você pode entender? O medo sempre foi a chave da prisão em que me tranquei, só me julgue se você não tiver tanto medo quanto eu.”
Naquela noite a mãe ficou preocupada, a filha não jantou. Não que não tivesse fome. Eu sabia. Ela se puniria, não por não ter desistido antes mesmo de que pudesse se realizar a sua bravata, mas sim porque sabia que mesmo que tivesse coragem, nunca se permitiria outra chance.
V ato: Ódio
          Quando soube da notícia, ouvindo a conversa de sua mãe com a de Arthur sobre a noiva do rapaz que viria conhecer a família naquele dia, ela fingiu para si mesma que estava ocupada de mais para dar a isso qualquer atenção. Nesse tempo já estávamos distantes, pois ela era quase uma adulta.
          Porém, naquele dia, como quem precisa urgentemente se confessar, ela me procurou, para me contar uma história, como que quisesse me dizer outras coisas usando essas palavras como uma máscara: “A primeira árvore do mundo ( disse ainda ofegante por causa da corrida até a minha casa) deu a luz a dois únicos frutos. Eis que como eram únicos e filhos de uma árvore também única, os dois frutos se amaram, e desejaram estar próximos. Porém estando um em cada extremidade da árvore, não podiam. Apenas amavam-se distantes enquanto eram nutridos pelas fortes raízes da arvore na terra.
           Certo dia, (Continuou) passou por ali uma mulher que parou para admirar a beleza daquela estranha construção viva. Os frutos notaram que ela tinha mãos, e tiveram a idéia de pedir a ela que os retirasse da árvore e que os colocasse em algum lugar onde pudessem ficar próximos um do outro. Contudo, a partir desse ato, eles estavam cientes de que, à medida que desligados da arvore que os nutria, aos poucos apodreceriam e morreriam. Porém a morte lenta na presença do ser amado era para eles melhor do que a eternidade em sua distancia, sendo assim, fizeram o pedido a mulher. Que aceitou ajudá-los.
         Quando arrancados da arvore, os frutos que possuíam o dom da consciência sentiram-se eufóricos e felizes. A mulher, com os dois frutos nas mãos escolhia um lugar seguro para depositá-los juntos.
Subitamente, porém, a mulher que possuía o dom da memória se lembrou que alguém havia lhe dito que nunca tocasse nem na arvore e nem em seus frutos, sendo assim, com um grito de pavor, atirou-os para longe como que para livrar-se de um castigo e saiu correndo aterrorizada. Os frutos, agora distantes, e separados de sua arvore mãe, continuaram se desejando, mudamente, enquanto apodreciam.”
Depois que contou a história ela continuou me olhando, como quem quisesse um julgamento e não aceitasse menos que a condenação. Eu não compreendi as palavras que ela escondeu dentro da história, e pela primeira vez eu não saberia o que dizer mesmo que quisesse feri-la. Eu havia aprendido com a sua crueldade. Então somente me calei.
Ela continuou me olhando perplexa até que seus olhos se enchessem de lágrimas:
_Esta é a única razão, você não faz diferença!_ Gritou.
E como eu não reagisse mesmo assim, correu de volta para sua casa.
VI ato: A morte
          Naquele ano, numa preguiçosa tarde de páscoa, veio a acontecer o fato que a ela devolveu a força e a mim, apresentou uma caricatura cruel e sempre surpreendente: a morte.
Arthur, vinha da casa de parentes, caminhava a pé. Um caminhoneiro, que levava os filhos para darem um passeio em seu caminhão, não observou a figura magricela do rapaz. O homem-flor transfigurou-se em pedaços de carne irreconhecíveis.
          A rua ficou em polvorosa, ela, de olhos arregalados pareceu se calar até o mais profundo pensamento. As crianças, embora contrariadas foram poupadas da miserável imagem do jovem esmagado a poucas quadras de nossas casas.
          Ela, porém, como quem pudesse de alguma forma salvá-lo, correu até o local do acidente. Sentia um estado crescente de desassossego, embora ainda não soubesse exatamente que este era o seu modo de ser e não de estar. Em algum momento obscuro durante a corrida até o local do acidente pensou em Deus, como uma pessoa que aperta a mão de outra que a protege só para ter certeza de que esse alguém ainda está lá. Ele estava. Ela não acreditava em Deus.
           Quando viu aquela massa inerte não chão, sentiu que uma substancia fria entrava por suas narinas e congelava todo o seu corpo, viu as lágrimas da mãe do jovem sobre o que fora até aquele momento o rapaz, todos os sons do burburinho ao redor se transformaram num zunido oco em seu ouvido.
Com os pensamentos se confundindo, viu-se recolhendo do chão um objeto quebrado, gorduroso. Enquanto desmaiava, ouviu a sua própria voz recitando parte de um poema que havia lido “ brandas as brisas brincam... o teu sorriso, no teu silêncio... arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... brincam nas flâmulas”
            Quando acordou em sua casa, voltou a ser a mesma menina calada. Apenas eu sabia. Para os demais, era apenas o “choque de uma visão tão terrível” dizia a mãe, como se vangloriando pela sensibilidade da filha. Mas eu sabia que na verdade, aquela tarde de páscoa, havia levado dela a única chance em sua vida de apropriar-se do mistério do Homem-flor: o dom de ser tudo em si. Talvez eu tivesse me enganado. Seu pensamento se tornava cada vez mais arredio ao meu sutil domínio.
VII ato: O par de óculos.
        A última vez que eu a vi, foi quando eu tinha 13 anos, na velha e empoeirada rodoviária daquela cidade. Os pais a estavam mandando para concluir os estudos em algum lugar maior. Ela alegrava-se por finalmente, depois da longa espera poder voltar a ser só.
           Ao se despedir de mim, fez sua última confissão, como que para lembrar-me de tantas outras:
“Agora eu só creio em ruínas de cidades inteiras que nunca tiveram nenhum habitante, e em gritos que quanto mais altos menos ouvidos, e em silêncios diurnos” _disse, olhando para um ponto que não identifiquei na paisagem distante da cidade.
          Eu concordei silenciosamente, embora já não conseguisse compreender sua linguagem cifrada. E a deixei partir admirando-a ainda.
          Vendo a sua imagem turva pela janela do ônibus, pela primeira vez ela me surpreendeu, a imagem me estarreceu tanto a ponto de provocar-me o riso descontrolado, diante de mim ela se transformava em uma figura improvável: o rosto pálido e magro, seus olhos negros e incisivos agora adornados com aquele artefato pesado e marrom, os óculos de Arthur Clemente, um tanto quanto deteriorado pelas circunstancias e pelo tempo.
           Ela viu a minha surpresa e o meu riso, e pela primeira vez em minha vida a vi sorrir, não um leve esboço de sorriso, como fazia sempre, mas agora um sorriso franco, aliviado, quase um gargalhar. Ela havia descoberto o outro lado de si... Como eu pude não ter percebido antes?
         Não pude deixar de reverenciar ainda mais a sua força, ela por fim havia conseguido, havia-se apropriado do que ele era, e agora era completa de si mesma, como se possuísse o seu avesso. Rimos um para o outro, enquanto ela me via, transformada naquela inegavelmente cômica e forte figura de óculos.
         A delicadeza daquela fumaça nauseante do velho ônibus que partia, talvez seja a única lembrança que tenhamos um do outro, e eu da minha própria infância, envolvida na presença daquela que não ousei dizer o nome, mas que escolheu crescer e tinha o dom de apropriar-se...
Agora, muitos anos depois daquela época, carrego o peso de uma vida adulta, lembro-me dela como uma criança e me reservo a guardar as lembranças da minha infância distante, deixo que as luzes se apaguem uma a uma, e a vejo empalidecer ao tempo, deixo o passado tragar todo o cintilar efervescente do agora.
          E quando esse tempo vem, apenas deixo-me lembrar de tudo, numa tarde chuvosa, azul-escuro, passam as luzes vermelhas dos carros muito distantes, a chuva é inaudível, está frio. E o mundo fica tomado de um imenso silêncio. E então o tempo cessa, a janela empalidece e se fecha. O tempo é outro. Outro agora. Eu me apropriei de sua alma triste.

Observação: para aqueles que se encontrarem desejosos de saber o nome dela, apenas deixo aqui alguns dos significados do termo apropriar: “Tornar próprio, adaptar, acomodar, conformar; apropriar o estilo ao tema, tomar para si, usurpar, apoderar-se, apossar-se de alguma coisa como própria” Talvez, algum leitor possa reconhecê-la e então pronunciar o seu nome...


Domingo


         Silêncio. Era assim que começava o seu dia, sempre na mesma hora, antes ainda de amanhecer. Ela interrompia o desagradável som do despertador, e ficava ouvindo o que acreditava ser a ausência de som, ainda que isso fosse uma ilusão, pois o silêncio é uma abstração humana.
         Entre as idas e vindas de uma vida cercada pelo senso comum, ela nunca tivera tempo para refletir sobre o que imaginava ouvir todos os dias de manhã. Levantou-se sem animo. É de se admitir que a sua vida fosse uma espécie de ato mecânico, e essa era a hora em que sempre se levantava.
          O espelho manchado, aquele mesmo rosto, talvez cada dia mais cansado e sem sentido. Reconheceu prontamente a si mesma em meio às manchas escuras no vidro e a louça perfeitamente limpa do banheiro, nada a acrescentar.
         Era domingo. Os domingos eram para ela tão brancos e brilhantes, que não sabia o que fazer com eles, pois eram por demais longos e cheios daquilo que ela imaginava ser silêncio. O nada, que nunca fora de fato tocado por ser humano nenhum, parecia tomar a forma dos moveis daquela casa e dos sons que vinham do seu exterior, distantes e cheios de poeira.
        Caminhou pela casa e sentiu falta de ter alguma obrigação para cumprir, ou de alguém que a importunasse com qualquer pergunta ou comentário, que não tivesse a menor vontade de responder.
        Enquanto caminhava para a cadeira onde leria sem nenhuma pressa ou interesse o seu jornal, pedia desesperadamente para visse pela janela de seu apartamento no 7° andar uma manada de touros correndo e fazendo sons com milhares de delicadíssimos sininhos, e deixassem na varanda um aroma de flores distantes. Só diante de tal acontecimento conseguiria se libertar da cruel sentença dessa manhã: Uma mulher, de 43 anos, divorciada, sem filhos, profissional excelente, sem belezas físicas ou grandes atrativos intelectuais que a isso justificasse, em silêncio, numa manha de domingo, lendo um jornal. .
        Caminhou lentamente em direção a cadeira, "movimentar-me com lentidão" controlava-se_ tinha que encontrar uma forma de eliminar mais um dia.
          Parada diante da cadeira, confrontando-se com aquele móvel, a mulher pela primeira vez começou a sentir uma estranha sensação: parecia ser um indício de algo, como algo que estivesse nascendo ou talvez antes morrendo em suas vísceras.
         Sentiu um violento espasmo e quase vomitou sobre o tapete púrpuro e empoeirado aos seus pés. Ocorria-lhe um pré-pensamento, e isso para ela seria uma maneira nova de estar ali naquele mesmo lugar. Isso não a agradou, queria fugir, mas onde poderia se esconder do pensamento que se anunciava? Não... Sabia que depois do pré-pensamento o pensamento viria e não haveria nada a fazer.
         Olhou com ódio para a cadeira, como se ela fosse a culpada pela desagradável experiência, pensou que poderia passar toda a sua vida ali, sem pensamento algum, escondida na sua vida perfeita e cercada de senso comum, e sem qualquer aviso, numa manhã ela é encontrada? Inevitável.
         Como se lhe fosse oferecida uma ultima chance, em desespero, com mais força do que precisava, arrancou do chão a cadeira, que na verdade era muito leve, ainda com a dádiva de não pensar, mas já sentindo as angústias do pensamento vindouro, ela correu até a sacada, desajeitada, batendo com a cadeira entre os móveis e arremessou-a, como se assim pudesse se livrar do que estava por acontecer...
         Sua abstração foi quebrada pelo alarme de um carro atingido pela cadeira. Hirta, na mistura de uma espécie de êxtase assassino e alívio, a mulher, não olhou para baixo, deu um passo para frente, ouviu as vozes das pessoas comentando a insanidade do ato, a boca seca, seu coração parecia acompanhar o hipnótico zunido do alarme do carro.
      Depois desse ato a mulher, caminhou lentamente para dentro do apartamento. No prédio a sua frente um homem que teve sua atenção chamada pelo barulho da cadeira ao cair sobre o carro, observava a figura que se movia quase petrificada. Ela quase pensava, e isso a tornava dura, uma imagem sem espelho.
        Sua boca seca começou a sibilar palavras que o homem não ouvia, apenas sabia que era um lamento antigo, como uma lágrima contida em algum lugar do antigo Egito, que agora retornasse na poeira, na dor do pré-pensamento.
       Ela continuava a dizer palavras que não pareciam fazer nenhum sentido, mas pronunciava-as com tal fervor religioso que poderiam até se tornarem palavras verdadeiras, ou seja, palavras mortais.
        O homem se aproximava da sacada do apartamento, tentando ver a mulher que agora caminhava em círculos pela sala, seu corpo aparecia e desaparecia entre as cortinas brancas, ela falava a sua língua estranha sem perceber que estava sendo observada.
       A mulher repetia como se conversasse com alguém que nunca tivesse existido, horas com fúria, horas lamentosamente, seu canto ou sua confissão: “Você nem sabe, mas as flores pequenas se transformaram em corações... ou estou ficando maluca? Alguém já viu uma arvore de corações? Sabe, eu li no livro da minha vida que eu me perderia na escuridão, e lá estaria eu segura... Tenho sonhado que meu coração está doente, costurado, tenho morrido em sonhos... Eu me lembro da sua partida... Eu nunca te conheci...”
      Intrigado o homem observa enquanto a mulher, já em pleno pensamento, descreve com uma caneta círculos pelas paredes brancas, escreve, rasga as cortinas e lança-as pela sacada com desconhecidas palavras de adeus, como se as tiras a muito tempo esperassem pela partida.
       Foram horas, uma conversa da mulher com ela mesma. O homem apenas observava. O domingo se foi, cansada a mulher adormeceu enrolada no tapete poeirento. Seu apartamento parecia um campo de batalha abandonado devido aos soldados terem finalmente percebido a inutilidade de suas causas. Ela dorme... O homem não.
        No dia seguinte, às sete horas a mulher acorda, tem um sobressalto, ela olha ao redor, esfrega a cabeça e os cabelos, constata a si mesma destruída, levanta-se.
        O homem na sacada de seu apartamento, também se agita, embora tivesse passado a noite acordado em sua solitária observação, o despertar da mulher pareceu libertá-lo de um transe.
        Ela passou mais alguns silenciosos minutos observando a si mesma naquele cenário de destruição. Quase se intoxicando com seu próprio hálito desagradável, como se seu corpo tivesse apodrecido por muito tempo ali enrolado naquele tapete, depois de tão dolorosa experiência de vida e morte.
         Levantou-se então apressada, e desapareceu dentro do apartamento. Alguns instantes depois reapareceu, agora bem vestida e os cabelos presos, muito séria, saiu apressadamente.
         O homem, desesperado, correu em direção a porta do seu apartamento e alcançou o elevador, precisava falar com a mulher, precisava saber o porque dos círculos nas paredes e do desespero do dia anterior, ele próprio cansado e com os ouvidos zunindo pela noite não dormida.
         A mulher saiu da portaria do seu prédio, inatingível. O homem, já na calçada, ofegante, avistou-a e correu em sua direção, ela observou a pressa e o desespero dele com um ar de desaprovação.
         Ele pensou em lhe dirigir a palavra, mas o olhar da mulher agora de perto era muito severo e rígido, ele teve medo, ela olhava como se quisesse retira-lo do caminho, e como se fosse seguir caminho justamente em direção a qualquer lugar que ele estivesse, para atropelá-lo. As pessoas numa grande cidade nunca sabem ao certo porque se odeiam.
        Ele percebe que ela vai falar alguma coisa: sua postura é grave como alguém que vai proferir ao condenado a sentença de morte. Ele estava preparado e ansioso para ouvir qualquer coisa que aquela mulher dissesse.
_Bom dia. ( disse ela, muito séria)
        O homem não soube por alguns instantes o que responder, até que devolveu embaraçado o “bom dia” e sem mais forças para questionar, se afastou.
         A mulher passou apressando o seu passo, resmungando qualquer coisa sobre o comportamento estranho do homem.
        Confuso e exausto ele voltou para o seu apartamento, foi dormir. Ao acordar, já no final da tarde, viu que as cortinas brancas do apartamento da mulher estavam novamente no seu lugar. Elas permaneceram fechadas pelo resto do ano.


Mensagens na tempestade

        Quando eu era pequena, sempre que via formar no céu uma tempestade fabricava alguns aviõezinhos de papel, neles escrevia mensagens, que imaginava que seriam levadas pela tempestade, pelo vento, para longe... Para longe...
         Lembro-me que sentia uma profunda melancolia: imaginava que um dia, muitos e muitos anos depois alguém poderia encontrar essas mensagens, colhendo ao vento o aviãozinho, mas com o tempo passado, nunca eu receberia uma resposta. Aguardando por ela, cresci. Meu pensamento sempre se perdia no horizonte das tempestades de verão.
        O céu ficava escuro, pesado, eu podia sentir a respiração suprimida do mundo na grandiosidade do azul acinzentado, e o vento, forte, muito forte, como fosse me desfazer em delicadas plumas de dente de leão: um desejo...
          Por isso, desde pequena, por causa das minhas mensagens, cada tempestade soa-me como um adeus, uma despedida e a lembrança de uma espera sem fim...
           Anos depois, já adulta e sem tempo para esperas na tempestade, algo se revelou a mim sobre minhas antigas mensagens, foi o fim da minha espera, e talvez o marco definitivo do fim da minha infância.
           O encontro entre mensagem e mensageira aconteceu como um confronto, num dia chuvoso, mas não de tempestade. Era perto do meio dia, tomei o ônibus em frente ao restaurante da universidade, como este estivesse muito lotado, eu em pé folheava um livro que havia retirado da biblioteca, um livro de poesias.
          Mal eu sabia, mas o livro seria a minha senha, havia sido reconhecida: um olhar me perscrutava desde que eu entrara na condução, e só agora eu percebia...
        Uma senhora, com seu olhar humilde me examinavam muito desconfiada. Em suas mãos cansadas, quase sujas, um livro. Ela olhava para mim e para o seu livro repetidamente como se estivesse lendo tanto a mim quanto ao livro. O livro estava fechado.
          A mulher tinha a força de uma semente: braços grossos, o rosto manchado de sol, e os dedos grossos com unhas curtas tingidas de terra que seguravam o livro a ponto de quase se fundirem com a sua matéria, como as raízes de uma velha arvore. Ela era concreta. O livro era seu, como seus eram os seus muitos filhos.
           Ela estava pronta para defender a qualquer momento ao livro e ao homem de aparência humilde ao seu lado, e a este defenderia por que era seu, ao livro ela defenderia por ser sagrado qualquer mistério. O casal levava muitos pertences em dois grandes sacos plásticos, talvez fossem viajantes. Tinham fome.
           O livro, protegido pela mulher, trazia uma bela fotografia na capa: a tempestade. Poderia contar uma história qualquer, talvez um romance. Ela não sabia ler, tão pouco seu homem.
           Sempre silenciosa, virou para o seu homem e sorriu sem alegria. Seus dentes maltratados e falhos. Jamais tentaria abrir o livro, porque quem ama ao sagrado não o revela. Já era idosa e talvez tivesse passado muitos anos, preservando o mistério primordial dentro do livro.
        A essa altura eu já havia me desligado das obrigações para observar a mulher, seu livro e o pequeno mundo que ela carregava ao seu redor nos dois bancos que ela, o homem e os dois sacos plásticos ocupavam. Ela se sentia observada e sentia medo, por ela, pelo livro e pelo homem. Era seu dever protegê-los.
         Talvez ela tenha me reconhecido pelo livro que eu trazia na mão. Ela sabia: eu era uma ameaça para o seu mundo sagrado, que ela escondeu dentro de um livro que jamais leria. Não existe abismo maior do que um mistério morto.
          Eu me tornava mais cruel à medida que via em mim o poder de desvendar o segredo. Era como se a minha voz abstrata se ofendesse diante da tamanha concretude da mulher a minha frente.
         O confronto estava instaurado: a mulher era o concreto, o sagrado, o ritual vivo e eu pura abstração de mensagens em tempestades, meu pensamento cada vez mais volátil em relâmpagos. Eu era a tempestade. Hipnotizada pela minha fúria repentina, dei um passo em direção a mulher, minha intenção era arrancar-lhe o livro do colo maternal e numa possessão profética lê-lo em voz alta, revelá-lo para a mulher, para o mundo...
       Eu já quase inclinava o corpo em direção ao livro quando uma freada súbita sacudiu toda a condução. As pessoas reclamaram, e tiveram que se reacomodar em seus lugares, meus olhos até então fixos no livro tiveram de se desviar para a superfície petrificada dos olhos da mulher concreta, que com seu olhar faminto de tudo o que se pode conhecer suplicou-me: “O segredo é tudo o que tenho”.
        Cansada e vencida, olhei sorri para a mulher, absolvendo-a. Com gratidão por não ter que destruir-me para defender o que era seu, ela devolveu o sorriso e novamente voltou seu olhar para o livro, agora a salvo e enraizado em suas mãos.
        O ônibus parou, desceram tranquilamente a mulher, seu homem e sua bagagem, acompanhei-os com o olhar enquanto se misturavam a multidão. A queda do livro no chão aconteceu muito rápido. As pessoas passavam de lá para cá. O casal, atarefado em abraçar seus únicos pertences não sentiu de imediato a perda. A mulher, não podia imaginar que havia se separado dela aquele livro que enraizara em si, ainda o sentia, como a mãe que envolta em uma canção de ninar ainda balança nos braços o filho morto.
       Continuaram caminhando sem olhar para trás, o livro foi esfacelando-se e o sob os pés dos transeuntes, que não desconfiavam estar dilacerando um segredo. Imaginei que tivesse sido este o mesmo fim das minhas mensagens nas tempestades da minha infância... Seriam segredos desperdiçados...
            O ônibus entrou em movimento, sentei-me em um dos bancos que ficaram vazios, continuei lendo poesias no livro que havia trazido da biblioteca até que o ônibus chegasse ao seu destino. O resto do dia transcorreu normalmente.


Orkut


              Isis era uma pessoa comum, isso basta para defini-la. Vivia uma grande contagem regressiva para hora nenhuma: vinte e quatro horas em um dia, sessenta minutos em uma hora, sessenta segundos em um minuto; no máximo 6 horas de sono por dia, acordar as 6: 15 da manhã; o ônibus para o trabalho sai as seis e quarenta e cinco; 10 minutos para o banho; 20 para o lanche ( no ônibus para a faculdade); 4 anos sem visitar a família; hoje, 23 anos; 15 dias para receber o próximo salário, chegar em casa, as 23:13.
           Sua vida era composta de fragmentos desconexos, sendo assim só se pode contar uma história sobre Isis começando por uma memória aleatória: O banheiro sujo e fétido do bar girava enquanto Isis se dava conta do quanto estava cansada. Já fazia tempo que não bebia tanto, talvez por isso a violenta crise de vômito. Era madrugada de sexta feira e no próximo dia teria que trabalhar, mas não queria pensar nisso agora, sobretudo não lhe interessava ainda pensar. Às vezes algum fragmento de memória ameaçava persistir, mas pensar seria um grande atrevimento.
          A tremedeira havia passado, como sempre que bebia muito, sabia que era melhor ir para casa agora.
          Deu uma ultima olhada nos cabelos tingidos, engoliu uma bala sabor artificial de menta, e saiu. Havia esquecido porque costumava viver em um eterno momento presente, já não lembrava mais do que a fez se tornar quem era agora, e nem mesmo do que havia vestido no ultimo inverno, mas orgulhava-se de ser uma pessoa comum, sem ser obrigada a se preocupar com mais nada além das obrigações que lhe eram atribuídas: Trabalhar como todos os outros, dizer as mesmas frases que todos os outros, consumir tudo o que lhe era devido como era função de todas as pessoas.
              Era vazia, e por isso sempre buscava algo novo, visto que tudo que existia não era o que ela estava procurando. Tinha uma fome de algo inexistente e isso a tornava constantemente infeliz, na permanência de uma insatisfação desconhecida. Vivia na multidão, ela aprendeu a irrealizar-se para ser aceita. Estava só.
           Ela assistia a tudo: as caras sorridentes nos anúncios, os corpos comercializados nas revistas, as supérfluas felicidades nas vitrines das lojas, “eles” eram artificialmente felizes, talvez ela quisesse apenas ser como “eles” em seu mundo de sabores artificiais, sem dor _sem-a-maldita-dor-de-ser-real.
            Isis vivia em uma grande cidade e gostava que tudo fosse assim: a fumaça fina e poluída das ruas, o caos ruídofônico dos carros, os corpos vazios das pessoas seguindo suas linhas retas pelas calçadas sem se enxergarem umas as outras, isso a agradava. Ela amava o simulacro.
            Morava sozinha, pois a vida na cidade era uma competição. Diante do velho computador, passava parte das madrugadas buscando talvez uma imagem definitiva, que pudesse dar conta de preencher toda a lacuna que a fazia esquecer-se do cheiro bom que tinha sua infância e levá-la de volta para um modo de ser onde tudo fosse mais do que superfície. Chegava todos os dias do trabalho, exausta, mas sem sono. Não havia companhia.
              Seus amigos pareciam bonecos de cera guardados em uma galeria empoeirada, eles nunca sabiam mais do que o necessário. Sua vida era uma conjunção de personagens, os dela e os dos outros. Apenas o tempo era verdadeiro, apenas o tempo não lhe sorria nunca, ia apagando tudo, só lhe restava o presente. Não se lembrava mais, sua memória era um cemitério de rostos distorcidos.
           Dentre as novidades provisórias com as quais simulava preencher sua vida, seu apartamento empoeirado e o computador barulhento, estava algo que nos últimos dias a estava deixando bastante eufórica. Era um novo site da internet, uma espécie de culto a imagem individual e ao mesmo tempo medidor de status. Nesse site qualquer pessoa podia divulgar sua imagem, sua vida, seu passado, suas relações, em um veículo de alcance mundial, como se tornasse mais um daqueles simulacros felizes das revistas de celebridades. Ela sempre concebeu a felicidade como um simulacro.
         O site se chamava “Orkut”, e servia também para troca de mensagens e como uma espécie de forma de colecionar amigos, que eram contados em numero, “Isis, tem 54 amigos”. Uma espécie de status era concedido a aqueles que tinham muitos amigos em sua “coleção”: no mundo das imagens vendáveis, as pessoas se sentiam felizes ao serem quantificadas. Isis estava sempre cansada, mas sua foto do “Orkut” cumpria por ela a obrigação de parecer sempre feliz e satisfeita. Ela sempre desempenhava um papel.
          Isis levou algumas horas para completar o seu “perfil”: selecionou as melhores fotos para publicar no site, coloriu a sua personalidade para que pudesse ser descrita. A idéia de inventar-se fazia com que se sentisse importante. Cuidadosamente escolheu publicar dentre os livros que havia lido aqueles que causariam mais impacto ao “público”, determinou onde parecer simpática e quando enfatizar uma opinião.
         Enfim editou-se. Estava pronto o seu perfil: Isis künstlich: “amigos: 0; 10 fotos; 0 recados. Quem sou eu: Vivo a beira de precipícios, nunca soube não querer e isso me fez ser um sinal muito distante de um antigo pedido de socorro em uma língua indecifrável”
           Foi aos poucos forjando a sua coleção de amigos, pequenas fotos que se aglomeravam numa rede como fossem personagens secundários em sua história, os dias se passavam e agora esperava diariamente por recados dos seus amigos de cera, para enfeitar a sua “vida perfeita” colorida entre suas fotos e sua versão melhorada em rede.
        Todos os dias chegava do trabalho com uma ansiedade quase infantil para saber quais recados lhe haviam sido enviados, quantas pessoas haviam se interessado pela sua imagem a ponto de acessarem o seu perfil no “Orkut”, era como se tivesse uma versão mais simples de sua vida, onde o falso e o verdadeiro seriam apenas sinônimos.
        Porém ela havia se esquecido que em seu mundo nada perdurava, as coisas iam e vinham dentro de moldes efêmeros demais, esquecer era a lei numero um do mundo do simulácro, e pela primeira vez ela quis ser alguém que passa duas vezes pelo mesmo rio, sendo ainda igual, sendo o rio ainda o mesmo.
         Viu-se surpreendida, não pela ausência de recados em seu Orkut, mas pela ausência de sentido em seu mundo, compreendeu que estava só e que não era ela a imagem sorridente de vida perfeita descrita no site da internet, ela havia criado um espectro de si mesma, e não podia nutri-lo, pois ela mesma não significava mais do que algumas horas de trabalho vendido, uma consumidora voraz das fábricas de cigarro, um número a mais na previdência social. E o que mais, o que, ou quem era ela afinal?
        Não havia jamais parado para cogitar a possibilidade de se tornar alguém de verdade, como um boneco que com um sopro do criador ganha a vida e, no entanto sente-se amedrontado pela terrível possibilidade de ser. Não, não pense em Deus, ela não poderia conceber algo tão atemporal, para ela, Deus sempre fora um código difícil de decifrar.
           No entanto, em uma noite, sentada em sua poltrona, diante do seu computador, sentiu-se tão vazia, e ao mesmo tempo tão inexistente, a ponto de compreender que naquele exato momento, simultaneamente, milhares de pessoas juntas não sabiam e não se importavam com a sua existência, pela primeira vez interpretou a solidão como algo fora do normal.
          Agora já não havia mais nada a fazer, não podia se tornar agora uma pessoa de verdade, visto que nascera e fora disciplinada para ser apenas uma casca, compreendeu que tinha que se habituar com o seu vazio. Decidiu então desaparecer, e fazer surgir de sua desaparição uma nova criatura, que fosse o seu contrário, e que a ensinasse a ser dentro de si. Decidiu forjar um outro ser, que somente existisse em forma incorpórea, para que este pudesse se livrar da armadilha de ser apenas uma representação.
          Ela trabalhou durante toda aquela madrugada, no dia seguinte, como se acostumara a fazer algumas vezes por causa da faculdade trabalharia sem o alívio de uma noite de sono. Aproveitando a flexibilidade do “Orkut” inventou sua nova personalidade, seria sua forma de gritar ao mundo a sua necessidade de ser, e de transfigurar sem vaidade seus velhos amigos de cera que sorriam feito manequins de plástico.
          O personagem que criou chamava-se Takeu Ludens, um homem, 75 anos, mais sábio à medida que próximo da morte, com memória, algo que sua ânsia pelo presente nunca a permitiu possuir. Ludens podia recordar, e sabia coisas que ela própria não poderia saber, pois ele já havia amado. A personalidade era o que as pessoas habituadas à linguagem do site poderiam chamar de “fake”, que no inglês significaria o mesmo que fraude; falso; falsificação; impostor.
          Para definir a personalidade do velho ela escreveu: “Sou alguém que pode te dar respostas que você procura. Sou aquele que aparece sempre em seu sonho ou pesadelo. Sou uma pergunta...” Ludens era o que ela nunca suportou ser por muito tempo: uma pergunta, ela sempre esteve à beira de precipícios, mas nunca cogitara lançar-se.
         Infiltrando-se nas interconexões do site, ela agora como Ludens podia pretensiosamente dizer a qualquer pessoa a verdade sobre ela, mesmo que estivesse dizendo a verdade sobre si mesma sem saber. Não seria punida, pois ele não tinha casca, ele era inteiro feito de matéria invisível, e isso fazia com que ela se sentisse forte por trás de sua máscara.
         Ludens agora já era uma pessoa, chegando quase a magnitude de uma inteireza, já colecionava um numero considerável de amigos em seu perfil no site da internet. Amigos aos quais Isis nunca havia visto, que o admiravam por dizer sempre a verdade e pelos seus conselhos, e sua mentora surpreendia pela facilidade com que as pessoas lhes contavam seus segredos, seriam eles imagens sem casca, apenas o substrato verdadeiro de pessoas que como ela haviam desistido de serem elas mesmas?
         Foi esta pergunta que fez ao perfil denominado Senhor Alarming, que trazia uma foto de um elegante homem que já havia morrido a muito tempo, talvez um ator de cinema: “Meu caro Alarming, podes me dizer se somos reais ou somos apenas um espectro dos pensamentos mudos de Deus?”
“Temos sentimentos... Acho que somos em outro plano, espectros dos sentimentos ocultos de Deus...” _ replicou a intrigante figura.
           Alarming era um “amigo” assíduo, e vivia um caso de amor com uma outra personalidade eletrônica, Senhorita Andrômeda, que quando não estava conectada era uma mulher casada, que utilizava-se da rede para viver fantasias românticas, contou ele depois ao seu amigo Ludens. O velho era confidente do homem solitário, que amava a alguém que não existia.
          Além do Senhor Alarming, também vários outros personagens se tomaram Ludens como uma espécie de confidente: N.J. uma mulher que parecia ter sido abandonada pelo seu homem, e misteriosamente parecia achar que Ludens era o seu amante disfarçado, ela fazia afirmações como que para desmascará-lo, “Lara” uma moça que a muito não falava com seu pai e pedia conselhos para resolver a situação.
          Isis observava agora outro modo de ser, as pessoas com quem Ludens se relacionava, mostravam-na um novo modo de estar no mundo, fossem mentiras ou verdades o que aquelas pessoas diziam, fossem elas reais ou não, ela estava agora experimentando uma dimensão obscura da existência, a possibilidade de reconhecer-se no oco das palavras das pessoas, e de não depender do correr das horas.
           Durante o dia, enquanto era Isis, ela ainda se deixava mover pelas horas, e se portava como alguém que ainda gostasse de sabores artificiais e de sorrisos de cera, porém, era crescente a sua necessidade de livrar-se da casca, e ser apenas uma pergunta, onde não houvesse qualquer espaço para respostas.
         Foi uma das “amizades” do perfil de Ludens, o estopim para os acontecimentos que a levaram a ter que escolher entre o real e ou simulacro: senhora X tinha apenas uma flor na foto que definia o seu perfil: uma rosa vermelha. Ela gostava de enviar para Ludens alguns poemas, e de vez enquanto Isis escolhia outros para retribuir a gentileza.
           Porém um dia, Isis, ficou surpresa diante de um recado da mulher, que dizia ser uma senhora de 70 anos: “Conheço te desde sempre, desculpe se me revelo somente agora. Sei que não podes reconhecer os rostos do seu passado, e que vive a procura do espectro de uma verdade, vejo-te e sei que não és quem és. Reconheça-me, Ludens, diga que se lembra do dia eu te olhava e me via, e tu, me olhavas e via a si mesmo refletido. Uma certa vez distante no tempo, e me disseste que as flores morrem cedo demais. Guardo ainda uma rosa vermelha para ti, desde quando me pediste para te esperar ” .
           O recado de Senhora X despertou em Isis a dúvida da criatura: como poderia Ludens, sua criação, ter um passado, anterior a sua existência? Seria possível que o velho que criara, com características tão peculiares existisse realmente? Ou seria ela própria, tanto quanto ele uma criação de outrem, que junto outras tantas criaturas de uma mente sombria e jogadora continuassem supondo sua pretensa autonomia, guiando-se pela linha invisível da vontade manipulada?
            Buscou desviar seu pensamento do assunto tentando concentrar-se novamente na tela do computador, porém, novamente se surpreendeu quando na simultaneidade da rede viu a chegada de um novo recado: “ Sei que podes me compreender. E que podes dizer que a mesma mão que me criou também transfigurou seus pensamentos para que não pudesses ver a verdade, conheço o teu nome, e o teu abismo, e estou aqui enquanto duvidas, mas sei que me reconhece”
            Isis afastou-se do computador, como se as palavras da mulher dissessem uma verdade que somente ela poderia conhecer, seria Senhora X sua própria alma perdida no tempo e decodificada de um passado ou de um futuro que ele não pudesse acessar?
           Na faculdade conheceu pessoas que acreditavam em universos paralelos e na intercomunicação entre passado, futuro e presente, mas nunca tevc tempo para se interessar por tais devaneios. Quem era o criador, quem era a criatura? Se ela própria nunca pudera se considerar real, se ela própria convivia entre as imagens falsificadas de todos a sua volta, e se o sabor de sua própria saliva agora lhe parecia artificial, como poderia não acreditar que ela própria seria uma mentira de si mesma para poder suportar a inexistência? Não existir é a pior forma de sentir o desprezo de Deus.
            Isis sentiu-se como alguém que é dilacerado em mil pedaços, e como se cada um deles lhe fosse escondido, roubada, como poderia recuperar agora sua identidade? Saiu a rua para tentar esquecer o turbilhão de pensamentos e um estranha sensação de medo, embora não soubesse ainda o que temer. Talvez tivesse mentido para si mesma, não queria esquecer, queria procurar os pedaços de si mesma.
             Nas ruas, as mesmas faces artificiais, as imagens, as propagandas, um mundo criado: queria correr para algum lugar onde não houvesse qualquer “criação”, mas tudo estava coberto de concreto, não havia para onde fugir. Parou no meio da rua atrapalhando o transito anônimo de pessoas, todas elas iguais: ela estava no meio da criação. Enquanto admirava o que parecia ser um quadro de Magritte, com aquelas milhares de pessoas de alguma forma uniformizadas, chamou-lhe a atenção a passagem de um homem.
           O homem vestia-se discretamente e parecia não ter rosto: a civilização ocidental, não se preocupa com o detalhe do rosto, desde os bancos de escola, somos acostumados a conhecer nucas. Ele ultrapassou-a caminhando com uma lentidão incomum, embora por mais que tentasse ela não conseguisse alcançá-lo. Percebeu que seu movimento parecia enfrentar uma resistência como se estivesse em baixo d’água, mesmo assim, precisava perseguir aquela curiosa figura, que não se diferenciava em nada das tantas outras.
             Seus sentidos já estavam começando a ficar embaralhados, o som dos carros parecia estar se transformando em um zunido insuportável que ia e vinha com o mesmo ritmo das batidas do seu coração. Sentiu uma angustia crescente, era como se a realidade estivesse se transfigurando diante dela ou pior, percebeu que sua realidade sempre fora distorcida, mas que nunca o perceberá por ter anulado seus sentidos e por ser ela própria feita de um material disforme e desconhecido.
           O homem começou a andar mais rápido e suas pernas começaram a fraquejar, percebeu que não poderia acompanhá-lo por muito tempo, e pode ver que na ânsia de segui-lo também havia se afastado muito de casa, não sabia onde estava, apenas notava que ainda estava em alguma parte desconhecida da grande cidade ou talvez uma parte desconhecida de si mesma: ela já não sabia mais se estava dentro ou fora, já havia se perdido.
           Multiplicado em várias figuras iguais, o homem, sempre caminhando tornava-se um exercito em fuga e ela perplexa notou que ele, ou eles, deixaram cair um pedaço de papel no chão. Numa sincronia perfeita ela vê os vários pedaços idênticos de papel caírem no chão como numa dança. Em desespero, ela se joga em direção a um dos milhares de pedaços de papel idênticos, abre o bilhete dobrado em quatro partes e lê: “Esquecer sempre. Vives o presente repetidos segundos das minhas mãos que te criam, e tu me crias. Somos a essência do universo auto gerado.Eu sou tua gênese tu és minha gênese” o bilhete era assinado por Takeu Ludens, a criação rebelde. Ela sentiu medo, mas não tinha mais como voltar, pois havia descoberto o nome que cria todas as coisas, mas não sabia pronunciá-lo.
          Decidiu voltar para casa e encontrar um meio de ter de volta o que era seu: seu pensamento. Não tinha um plano agora, nada mais podia ser feito. A liberdade já não existia mais. Uma ilusão quando revelada é espelho que se quebra para sempre: não se encontra mais identidade em grãos de areia. À medida que caminhava e que ia reconhecendo as ruas tudo ia voltando à normalidade superficial de sempre embora ela já não fosse a mesma.
           De volta ao seu apartamento, decidiu enfrentar-se de uma vez por todas, como uma mulher que engole o suco vivo do ventre de um inseto para se esconder do pavor que tem de serem ambos, ela e o inseto, a mesma e única coisa. Ela já estava pronta para se desmanchar na cegueira da sua própria loucura agora revelada.
            Voltou ao computador, sentou-se, respirou, e escreveu, respondendo ao recado deixado no site de relacionamento: “Senhora X, encontre-me, te esperarei no mesmo lugar onde te disse que as flores vivem enquanto não se conta as horas que morrem dentro”.
             Agora, permitindo-se a loucura, ela se lembrava exatamente o lugar onde encontraria Senhora X e havia desenhado seu rosto em uma memória inventada, mas quais as memórias verdadeiras e quais as falsas? E se toda a sua vida até aquele exato momento fosse uma memória falsa de um personagem ainda desconhecido? Seguiu em direção ao local combinado, sem saber agora se era ela quem se guiava ou a mão de um ser misterioso que lhe dirigisse os atos.
         Isis saiu de seu apartamento e lembrou-se de levar uma rosa vermelha para sua desconhecida interlocutora, talvez uma sombra dela mesma perdida em algum lugar ou em um tempo desconhecido onde deuses são ondas e partículas ao mesmo tempo e uma única rosa vermelha pode estar presente em um lugar e em outro ao mesmo tempo sem que as mãos ansiosas que as seguram  percebam.
         Ela própria não sabia mais se não havia uma versão de si ainda levando a mesma vida mecânica e anônima enquanto esta Isis vivia a aventura de encontrar uma resposta para perguntas que nunca havia feito.
         Chegou ao café, a decoração não denotava passado nem futuro, apenas presente. Ela se sentou, a flor sobre a mesa. Ela nunca havia esperado antes, pois esperar é um ato de grande desafio para quem não é dono do tempo, mas agora ela era dona de si mesma, embora precisasse ainda descobrir quem de fato era. A espera foi longa, tanto que a noite chegou. Decidiu voltar para casa.
         Em casa, mandou um novo recado para Senhora X: “Estarei esperando por ti, todos os dias, ao entardecer, com uma rosa vermelha, mesmo que demores, eu estarei lá, e se não vieres, jamais saberei quem sou”.
         Depois disso, Isis, recuperou-se e passou a seguir o antigo ritual de sua vida mecânica, via os mesmos retratos falsificados nos autdores nas ruas, e se alimentava dos mesmos sabores artificiais sempre os mesmos com novas embalagens. Porém agora ela sabia que ela própria não tinha vida, e era uma ínfima parte perdida de um criador sem memória, um ínfimo grão de areia vagando pelo universo.
        E assim passados os dias, as horas, o trabalho vendido, a rotina dos carros, a fumaça da cidade que enegrecia o céu, já não se viam todos os dias as estrelas, anos de solidão e sempre se via a mesma imagem : uma mulher com sua rosa vermelha, sentada numa mesma mesa, envelhecendo sempre, em um café anônimo, em uma cidade anônima, em silêncio, a tarde caindo...